Presidente do Conselho Fiscal da Sanepar divulga artigo sobre cidadania e acesso à água

Nivaldo Krüger critica posição da Justiça em atender Consórcio Dominó sobre a gerência da Sanepar em “A cidadania por água abaixo”
Publicação
01/10/2007 - 15:52
Editoria
A cidadania por água abaixo (*) Nivaldo Krüger Como a ingerência cega da Justiça coloca o povo paranaense a mercê do lucro espúrio “Os homens não se vendem de graça, o seu amor-próprio lhes marca o preço, mas a concorrência o rebaixa”. Mariano José Pereira da Fonseca, o marquês de Maricá Qualquer referência feita ao Estado, como um todo, traz a reboque o conceito mínimo de que os poderes, ao interagirem, buscam um equilíbrio que proporcione o pleno exercício da democracia. No momento em que o País enfrenta a mais grave crise política, a esperança da nação repousa, em tese, na cegueira da Justiça, a qual nem sempre tem olhos para o povo. Quando a Justiça se volta contra a maioria, dando a uma minoria repetidamente privilegiada mais direitos do que já tem, é possível compreender que o Estado Democrático de Direito, se é que existe, está sendo corroído por um jogo espúrio de interesses. Tendo levado uma vida de oxímoros, mas retomando a coerência nos últimos anos de sua existência, o poeta francês Paul Claudel tem a melhor explicação para a crise institucional que atualmente assola o cotidiano dos brasileiros. “A ordem é o prazer da razão, mas a desordem é a delícia da imaginação”. Traduzindo, a “Ordem e Progresso” que nossa bandeira carrega parece descabida. Tomando emprestada a imaginação desordeira citada por Claudel, cabe-me desembarcar no cerne de minha indignação. Há dias, uma decisão da Justiça colocou em xeque não apenas o conjunto de leis que rege o nosso dia-a-dia, mas deixou claro que o pacto federativo é um devaneio jurídico-regimental que vive à mercê de uma intempestiva interpretação jurídica qualquer. Tão logo assumiu o governo do Paraná, ainda em 2003, o governador Roberto Requião decidiu, em defesa do povo paranaense, corrigir imperfeições na venda de pouco mais de um terço da Sanepar, a companhia de saneamento do Estado, alvo de negociações pouco ortodoxas realizadas por seu antecessor, Jaime Lerner. O assunto ora em questão é contestar o excessivo poder transferido aos que aportaram o capital necessário para adquirir um quinhão da empresa, nesse caso o Consórcio Dominó. Muito estranhamente, nesse negócio pouco inteligível, o Consórcio Dominó passou a deter o poder de gerir os negócios da Sanepar, deixando de lado a lógica do capitalismo, que o economista mais influente do século passado, John Maynard Keynes, tão bem condenou: “O capitalismo é a crença mais estarrecedora de que o mais insignificante dos homens fará a mais insignificante das coisas para o bem de todos”. Ao transferir ao Consórcio Dominó a gerência da Sanepar, Jaime Lerner reconheceu oficialmente a incapacidade administrativa de seu governo em gerir a empresa, ou algo muito estranho e obsceno ainda existe debaixo do tapete do ex-governador, que se achando descendente de Aladim apunhalou o povo paranaense. Para fugir da insignificância das coisas, o governador Requião, cônscio de suas atribuições, recorreu ao Legislativo para retomar a gestão dos negócios da Sanepar, requisito que lhe foi concedido de imediato através de Decreto Legislativo, anuído inclusive pelos seguidores de Jaime Lerner. Afinal, o povo do Paraná não poderia continuar refém dos interesses cada vez duvidosos de um consórcio empresarial que investiu o mínimo para abocanhar o máximo. Se de lá para cá as rusgas advindas do descontentamento mútuo têm sido discutidas no âmbito da Justiça, um dos preceitos constitucionais – o direito ao saneamento básico – tem sido garantido aos paranaenses, que conferem tal prerrogativa em um simples abrir de torneira. Atualmente, a Sanepar, uma empresa reconhecida nacionalmente por sua excelência, atende 99,07% dos paranaenses com abastecimento de água. Sem muitas delongas, cabe-me lembrar que a Sanepar, em 2003, foi agraciada com o prêmio “Valor 1000”, por ser considerada a melhor empresa de saneamento do País. Em 2005, pela segunda vez, a Sanepar foi apontada como empresa campeã nacional do setor, prêmio concedido pelo jornal Valor Econômico e pela respeitável Fundação Getúlio Vargas. Longe das premiações, a gestão correta e precisa da Sanepar tem sido contemplada com a aprovação de suas contas no Tribunal de Contas do Estado. É preciso reconhecer que no mundo capitalista todo e qualquer investimento coloca em sua alça de mira um retorno financeiro, mas lucro maior, quando se trata de ações governamentais, é o lucro social que o Estado pode produzir a partir de uma gestão consciente e democrática. A partir da criação da chamada “Tarifa Social”, que vem proporcionando a 1,4 milhão de paranaenses de baixa renda acesso ao saneamento básico – água e esgoto –, o pleno exercício da cidadania tem patrocinado o acúmulo do lucro social, algo difícil de ser contemplado por aqueles vorazes investidores que insistem em manter uma visão obtusa na direção do lucro financeiro contínuo. Ao atender aos mais necessitados, o que contrariou o Consórcio Dominó – agora rebatizado como Dominó Holdings, não significa que a Sanepar se transformou em uma empresa deficitária e não lucrativa, mas muito pelo contrário. Entre 2002 e 2006, o acionista minoritário da Sanepar teve o seu capital regiamente remunerado, sendo que a criação da Tarifa Social teria sido abortada caso a Dominó Holdings ainda estivesse à frente da administração da Sanepar. Retomando o pensamento de Keynes, “não é função do governo fazer um pouco pior, ou melhor, o que os outros podem fazer, e sim fazer o que ninguém pode fazer”. Ora, se a Dominó Holdings tem olhos voltados apenas aos lucros, independentemente da forma como eles (lucros) surjam, é obrigação de qualquer governante de visão múltipla de Estado cuidar de seus tutelados políticos, uma vez que a excelência democrática está no convívio fraternal e no bem estar de seus integrantes, desde que respeitados os direitos e deveres de cada um. Ao contestar a lisura do negócio realizado na era Jaime Lerner, o governador Roberto Requião defendeu, além do patrimônio público, o povo paranaense. E como em questões eleitorais manda aquele que maioria obtém nas urnas, contestar o governador Requião seria sandice em último grau. Aprovado em setembro de 2005, o Decreto Legislativo que manteve a Sanepar sob o comando do governo do Paraná foi anulado por decisão do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, atendendo à volúpia por lucros da Dominó Holdings. Ao decidir contra os interesses do povo paranaense, sob a alegação de que contratos não podem ser quebrados, o STJ simplesmente perde a razão da lógica, mostrando que a tão propalada cegueira da Justiça é, como mencionado acima, uma utopia filosófica que recheia livros e discursos inocentes. O que é, na opinião dos doutos magistrados, mais saudável? Evitar quebra de contratos ou manter contratos lesivos ao interesse coletivo? É fato que decisões devem ser cumpridas, mas discuti-las é uma obrigação de todo governante comprometido com os interesses do povo. Ao questionar a decisão do STJ, o que deve acontecer nas próximas horas, Roberto Requião deixará evidente que o mais importante é não se ater a uma possível quebra de contrato, mas sim à necessidade de se interromper um contrato lesivo aos interesses do povo paranaense. Ou será que o STJ, no rastro da jurisprudência, prefere afagar a selvageria capitalista? Detentora de 39,7% das ações da Sanepar, a Dominó Holdings é constituída pelo grupo francês Vivendi (atual Sanedo), a construtora Andrade Gutierrez, o banco Opportunity e a Copel Participações. Nesse balaio de investidores, destaca-se o Banco Opportunity, provavelmente o mentor intelectual da fórmula de investir pouco e abocanhar muito, prática já conferida em empresas como a Telemig Celular, Amazônia Celular e Brasil Telecom, sendo que a sorte empresarial desta última companhia se arrasta em tribunais nacionais e internacionais. Comandado pelo banqueiro Daniel Dantas, que muitos rotulam como sendo o gênio do mal, o Banco Opportunity acabou perdendo a Telemig Celular e a Amazônia Celular, pelos mesmo motivos que levam o Paraná a lutar pela Sanepar. Gula empresarial. Sem contar que ambas as empresas foram insistentemente citadas no escândalo do mensalão. Lembrando o filósofo Aristóteles, “Somos aquilo que fizemos repetidamente”. Ao que parece, o grupo Dominó Holdings é o que repetidamente faz. Em outras palavras, faz do lucro incessante a sua cartilha diária, sem dar a mínima importância ao vilipendio do direito do Estado e do contribuinte. Se por um lado contratos comerciais podem e devem ser discutidos quando necessário, por outro o pacto federativo é soberano em seu conceito básico. Oriundo da Constituição norte-americana de 1787, o Estado Federal é o modelo adotado pelo Brasil, o qual preconiza a melhor gerência da coisa pública, através da repartição de competências abrangentes. Essa descentralização política não só emoldura a participação dos Estados membros nas decisões do Governo Federal, mas possibilita, de forma inconteste, aos estados membros da federação o estabelecimento de suas próprias constituições, desde que não contrariem a Carta Magna, esteio de todo o ordenamento jurídico e pilar do Estado Democrático. O que tenta agora o STJ, ao contemplar os interesses de um grupo investidor que só visa o lucro contínuo, como se a cidadania do povo paranaense fosse um caça-níquel de cassino de quinta, é anular o Paraná como integrante do Estado Federal Brasileiro, não sem antes desrespeitar decisões soberanas, pois um Decreto Legislativo tem força de lei e é soberano. No contraponto, ao STJ, como integrante do Judiciário, não cabe ingerir no Poder Legislativo do Paraná, que por força de lei tem a prerrogativa constitucional de editar e aprovar leis, de acordo com a conveniência e necessidade daqueles que o mantém, ou seja, o povo paranaense. Sem nenhuma nesga de sensibilidade democrática, os ministros do STJ simplesmente analisaram o pleito do grupo Dominó Holdings sob a ótica processual. É sabido que a Justiça é cega, mas essa cegueira virtual não pode fazer do Judiciário um poder acéfalo e não pensante. A Sanepar é do povo paranaense, e ao governador Roberto Requião cabe a estrita obrigação de defendê-lo. Até porque, preciso foi o filósofo Platão, que um dia disse que “a punição que os bons sofrem, quando se recusam a tomar parte do governo, é viver sob o governo dos maus”. (*) Nivaldo Krüger, Secretário de Estado para a Representação do Paraná em Brasília, é ex-presidente da Companhia de Saneamento do Paraná e atual presidente do Conselho Fiscal da Sanepar.