Criada em 1989 para regulamentar o uso, o aperfeiçoamento e a distribuição dos programas de computador desenvolvidos em software livre, a chamada Licença Pública Geral GNU (GNU-GPL), começa a sofrer modificações. Uma conferência internacional realizada recentemente no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (EUA deu início à discussão sobre essas mudanças.
Diretor de Internet do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI), membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e coordenador do Grupo de Trabalho-Info da OAB/PR, o advogado e professor paranaense Omar Kaminski, do escritório Kaminski, Cerdeira e Persserl, foi um dos representantes brasileiros nessa conferência.
Ele também foi contratado pelo Governo do Estado e pela Celepar Informática do Paraná para elaborar a versão estadual da GPL que dispõe sobre o uso dos sistemas desenvolvidos pelo Estado em software livre. O Paraná é o Estado mais avançado no uso e desenvolvimento de soluções em sistemas de código-fonte aberto.
Nesta entrevista à Assessoria de Comunicação da Celepar, Kaminski explica que é a primeira vez que se discute de forma global uma licença de software. Isto implica em questões de direito internacional e de adaptação da legisação brasileira a essas normas, tal como fez o governo paranaense ao estabelecer uma licença própria. Kaminski destaca que um dos principais pontos da nova GPL é o envolvimento da comunidade em sua discussão e elaboração. Ele prevê que no prazo de cinco meses a nova versão deverá ser concluída.
Celepar - Quais são as modificações pretendidas pela terceira versão da Licença Pública Geral (GPL), discutida durante a Conferência Internacional realizada recentemente em Massachussetts, EUA, para uso e distribuição de software livre?
Kaminski- O rascunho apresentado pela Fundação do Software Livre (FSF) apresenta uma proposta de modernização, de atualização de uma licença de software livre considerada modelo. Além disso, pretende clarear alguns pontos permitindo uma melhor interpretação do conteúdo. Mas também introduz alguns tópicos novos, especialmente sobre patentes de software e DRMs (Digital Rights Management, ou Gestão de Direitos Digitais), que são restrições tecnológicas à distribuição de conteúdo digital. Também está contemplada uma previsão para compatibilidade de licenças, o que tornará mais fácil a harmonização de programas licenciado com outras licenças com a nova GPL. São questões ainda pouco estudadas no Brasil, e ao mesmo tempo é a primeira vez que se discute uma licença de software de modo global. E o mais importante é que esse processo está sendo aberto à comunidade mundial, que pode participar diretamente no site da FSF (http://gplv3.fsf.org/comments) com idéias e sugestões.
Celepar - Quais os impactos que essas modificações terão sobre usuários e desenvolvedores de software livre?
Kaminski - Devemos ressaltar por primeiro a importância das licenças no contexto do software. A licença é importante porque é um instrumento jurídico no qual o desenvolvedor diz o que pode e o que não pode ser feito com o programa de computador de sua autoria. Devemos ainda lembrar que a Lei de Software prevê que "o uso do programa de computador no país será objeto de contrato de licença. "Quaisquer alterações em um contrato - a licença é uma forma de contrato, de acordo de vontades - devem ser vistas com atenção. Claro, podem ser benéfica aos usuários e desenvolvedores, na medida em que se consolidam certos princípios e a importância de se discutir sobre a adoção de um determinado modelo de licença é reconhecida.
Celepar- Quais as implicações de uma licença que se pretende global, especialmente em relação às diversas traduções, já que existem diferenças entre as legislações internas de cada país?
Kaminski - Ao mesmo tempo que existem diferenças internas, e quase todos os países do mundo são signatários das convenções internacionais sobre direitos autorais, como a Convenção de Berna e o TRIPS, os princípios gerais utilizados são os mesmos. O que está se tentando fazer é tornar a licença “jurisdicionalmente neutra”, ou seja, diminuir a carga de provisões específicas do direito norte-americano. Segundo o Código Civil, os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no país. Mas Stallman (Richard Stallman, principal ideólogo e criador do movimento software livre internacional) alega que as traduções não podem ser reconhecidas pela FSF, na medida que uma palavra traduzida equivocadamente (sem seguir o “espírito” da licença) poderia introduzir um “bug” no texto da licença. Com isso, na tradução da versão 2, elaborada pelo iCommons brasileiro e FGV/RJ, consta um “disclaimer” (http://creativecommons.org/licenses/GPL/2.0/legalcode.pt) conforme sugerido pela FSF: “Esta é uma tradução não-oficial da GNU General Public License para o Português. Ela não é publicada pela Free Software Foundation e não traz os termos de distribuição legal do software que usa a GNU GPL - estes termos estão contidos apenas no texto da GNU GPL original em inglês. No entanto, esperamos que esta tradução ajudará no melhor entendimento da GNU GPL em Português”. Isso ainda traz uma dificuldade, senão uma insegurança no desenvolvedor brasileiro. Por isso, no caso do Paraná, em atitude pioneira, o Governador do Estado decidiu adotar uma licença semelhante à GPL2, chamada de "Licença Pública Geral para Programas de Computador da Administração Pública" (ou LPG-AP), por meio do Decreto nº 5.111, de 19/07/2005, e que “estabelece diretrizes para o licenciamento de programas de computador de titularidade de entidades da Administração Estadual”. Entre outras garantias típicas do software livre, a LPG-AP garante que qualquer interessado possa usar, publicar, distribuir, reproduzir ou alterar o programa licenciado, obrigando que o programa sempre seja distribuído junto de seu código-fonte, e sem qualquer ônus. Outra questão local, e que iremos colocar em discussão nos comitês: segundo a lei do software, não se aplicam as disposições relativas aos direitos morais, exceto no caso de alterações não-autorizadas que resultem em deformação, mutilação ou outra modificação do programa de computador, e que com isso prejudiquem a honra ou a reputação do autor. Neste caso, o autor terá a qualquer tempo o direito de reivindicar a paternidade do programa de computador e de opor-se a tais alterações. Esse direito não é previsto na GPL.
Celepar - De que forma os comitês de discussão aprovados durante a Conferência irão trabalhar e qual o prazo para a conclusão dos trabalhos de revisão da GPL?
Kaminski- Pelo menos mais dois rascunhos da versão 3 da GPL serão disponibilizados para comentários do público. O segundo rascunho deverá estar pronto após quatro ou cinco meses de discussões, e o terceiro até outubro de 2006. Foi estabelecida a data de 15 de janeiro de 2007 como ideal para o lançamento da versão final, mas já se admite que as discussões poderão se prolongar até março. Até agora são quatro comitês formados. O comitê “A” é composto por empresas públicas e privadas, o “B” é composto por licenciantes e distribuidores, comerciais e não-comerciais, o “C” é destinado a advogados e usuários corporativos, e “D”, formado por desenvolvedores e membros da comunidade. Os trabalhos ainda estão em fase inicial, portanto o número de comitês e de membros ainda poderá crescer.
Celepar - Como os participantes da Conferência estão encarando temas como o uso de patentes de software e a instalação de dispositivos anti-cópias?
Kaminski -Estes tópicos foram temas de algumas das principais discussões da Conferência. A posição da FSF é que os DRM são fundamentalmente incompatíveis com o software livre e, portanto, se forem utilizados em projetos abertos, seus códigos devem estar disponíveis (tornando a proteção sem sentido). Conforme já dissemos, há ainda a inserção de uma proposta para retaliação a quem processa terceiros por infração a patentes de software. Os DRMs são considerados como medidas de proteção tecnológica, e se alguém utilizar um código licenciado pela GPL3 como parte de um DRM, irá violar a licença. Tais implicações, além de jurídicas, são também políticas, uma vez que a FSF se posiciona frontalmente contra as patentes de software e contra a lei americana chamada de Digital Millenium Copyryght Act (DMCA).
Celepar - Como eliminar os entraves jurídicos existentes, especialmente alguns aspectos do Código de Defesa do Consumidor, para a efetiva aplicação do software livre no país? Será necessária a revisão do Código ou a simples tradução da licença para o português, com o devido reconhecimento da Fundação de Software Livre (FSF)?
Kaminski- Acreditamos que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica aos autores e desenvolvedores que disponibilizam software na Internet, mas apenas a quem presta serviços sobre o software. Neste caso, em eventual ação judicial, o desenvolvedor responderia apenas pelo dolo, ou seja, caso ele tenha inserido um código malicioso no software, como trojans, spywares e backdoors. Fundamentalmente não há incompatibilidades entre o conteúdo da GPL e o ordenamento jurídico brasileiro. O que acontece é uma diferença de forma, a qual causa repercussões jurídicas, especialmente na área do direito administrativo. Este é o motivo do governo paranaense ter adotado uma licença própria: para adequar as exigências formais da legislação nacional ao espírito da GPL. Assim, ficou afastada qualquer alegação de "renúncia ou evasão de receita e suscetível como improbidade administrativa", como ocorreu com o software Direto no Rio Grande do Sul. Diante disso, é propício lembrarmos de que se encontra no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Partido da Frente Liberal (PFL) contra a Lei nº 11.871, de 19/12/2002, do Estado do Rio Grande do Sul. Segundo o art. 1º dessa lei, "a administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional do RS, assim como os órgãos autônomos e empresas sob o controle do Estado utilizarão preferencialmente em seus sistemas e equipamentos de informática programas abertos, livres de restrições proprietárias quanto a sua cessão, alteração e distribuição". A Procuradoria Geral da República já se manifestou defendendo a improcedência da ação, porque “a lei apenas autoriza o Poder Público a utilizar programas livres, quando lhe forem oportunos e convenientes, e oferecerem mais vantagens que os programas comerciais”.
Celepar- O Paraná é um dos principais usuários e desenvolvedores de software livre no Brasil e na América Latina, tendo, inclusive, editado um decreto que disponibiliza seus programas para uso público. Qual a sua opinião sobre o interesse do estado em sediar um fórum de discussão sobre a revisão da GPL?
Kaminski - Esta iniciativa é da maior importância, ainda mais que a própria FSF manifestou seu interesse na discussão política sobre o assunto. O governo do Paraná tem oferecido grande apoio às iniciativas de software livre – atualmente é o Estado mais avançado nesse sentido - e o Brasil está em evidência no exterior por valorizar o software livre em detrimento a soluções "escravas". Esperemos que as negociações sejam frutíferas e que a comunidade tenha interesse em participar ativamente.
Nova licença internacional de software livre tem participação de advogado do Paraná
Omar Kaminski elaborou a versão estadual da licença, cujo decreto foi assinado pelo governador Roberto Requião
Publicação
31/01/2006 - 17:40
31/01/2006 - 17:40
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