O governador Roberto Requião tem balizado seu governo - explicitou isso publicamente dezenas de vezes - pela “Carta de Puebla”, ou resumidamente pela “Opção Preferencial pelos Pobres”.
Poucos sabem exatamente do que o governador está falando. A finalidade desse artigo é esclarecer o que é a Carta de Puebla? Quais suas principais recomendações? E a importância dela para a política na América Latina.
Puebla foi uma Conferência dos Bispos da Igreja Católica da América Latina que aconteceu na cidade mexicana de Puebla, tendo sua abertura no dia 28/01/1979.
A realização da Conferência, em Puebla, não foi tranqüila. Havia participantes importantes no cenário eclesial que se posicionavam contrariamente às propostas de retrocesso do Celam (organismo que congrega os bispos da América Latina), principalmente a tentativa de condenar a Teologia da Libertação e de cercear a liberdade das Comunidades de Base. Eram os bispos Dom Hélder Câmara, Evaristo Arns, Leônidas Proaño e Oscar Romero, todos defensores das Comunidades de Base e da Opção Preferencial pelos Pobres. O documento final da conferência, a popular “Carta de Puebla”, não chegou a ser propriamente revolucionário, mas não perdeu o fio condutor do documento de Medellín – que foi a conferência anterior, realizada 10 anos antes na Cidade colombiana de Medellín, e essa conferência, sim, produziu um documento muito mais radical e revolucionário.
Não se pode esquecer de que Puebla é mais do que um documento. Puebla é o que dessa assembléia esperavam os pobres da América Latina, saindo fortalecidas as Comunidades de Base e não havendo condenação a Teologia da Libertação. O documento que veio à luz é apenas um momento da caminhada em busca de justiça, de uma sociedade mais igualitária e da superação das gritantes desigualdades sociais na América Latina.
A Opção preferencial pelos pobres constitui o eixo do documento e seu princípio animador. É o ângulo que permite uma visão unitária e coerente. Pode, até mesmo, ser considerado como algo prévio ao documento, uma vez que constitui a tônica da evangelização e da pastoral nos dez anos decorridos de Medellín a Puebla.
Quem é o pobre na América Latina?
O documento usa o termo “pobre” no sentido bíblico de anawin: o curvado, o oprimido. O termo tem, na Bíblia, uma conotação político-social. Designa o escravo, o estrangeiro, o perseguido, o cativo. Não se trata, pois, do simples necessitado, mas do oprimido e do explorado. Não designa apenas o indivíduo, mas a classe social explorada, a raça marginalizada, o grupo oprimido: indígenas e afro-americanos, camponeses sem terra, operários, desempregados e sub-empregados marginalizados em aglomerados urbanos, jovens frustrados socialmente e desorientados, crianças golpeadas pela pobreza, menores abandonados e carentes e a mulher. O documento se refere ainda aos migrantes e às prostitutas.
Trata-se não da pobreza evangélica (estilo de vida sóbria e liberdade existencial frente às riquezas), mas da pobreza antievangélica, que é sinônimo de exploração, de opressão, de situação desumana. Trata-se da pobreza de dimensão sócio-política, isto é, generalizada e estrutural. O documento é bem explícito: “Ao analisarmos mais a fundo tal situação, descobrimos que essa pobreza não é uma etapa transitória, e sim produto de situações e estruturas econômicas sociais e políticas que dão origem a esse estado de pobreza...”
O que significa “opção”?
“Opção” quer dizer decisão, tomada de partido. Entre opressores e oprimidos (no caso latino-americano), tomamos o partido dos últimos. Trata-se de uma decisão política (pois os pobres são fruto de uma estrutura sócio-política opressora), ética (é um imperativo moral) e evangélica (pois essa foi à opção de Jesus).
A opção pelos pobres implica uma mudança de lugar social. O lugar social condiciona o nosso discernimento: sensibilidade para perceber, leitura da realidade, decisão. A opção preferencial pelos pobres é, no documento, o ângulo através do qual devemos fazer a leitura da realidade latino-americana.
O que significa “preferencial”?
A partir do lugar social dos pobres, portanto, a partir de baixo procuramos transformar a realidade e as pessoas, convidando a todos a uma conversão que implica em abraçar a causa dos pobres, através, principalmente, do questionamento, da solidariedade, da simplicidade e do serviço.
Essa Opção Preferencial pelos Pobres se faz dentro de uma leitura estrutural da realidade latino-americana.
A leitura funcionalista concebe a sociedade como um todo harmônico e que necessita apenas de remendos aqui ou ali. Ela conduz sempre a uma ação assistencialista e desenvolvimentista, pois supõe que as reformas se façam dentro de uma estrutura sócio-política que deve permanecer inalterada. Desenvolver não é libertar, mas apenas trazer os que estão à margem de tal tipo de sociedade para dentro dela.
A leitura dialética, ao contrário, permite descobrir os conflitos da sociedade, a estrutura geradora de opressores e oprimidos. Permite não apenas detectar os sintomas, mas também suas causas. O pobre é visto não como subdesenvolvido, marginalizado, mas como oprimido.
O documento elaborado pela Assembléia possui uma visão dialética da realidade. Refere-se aos “mecanismos geradores de pobreza”, à “realidade escandalosa da América Latina”. Trata-se de uma denúncia que toma, até mesmo, o tom de indignação profética: “A luz da fé, vemos a distância crescente entre ricos e pobres como um escândalo e uma contradição com o ser cristão. O luxo de uma minoria constitui um insulto à miséria das grandes massas. Essa situação é contrária ao desígnio do Criador e à honra a ele devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, aliás, bem mais grave por acontecer em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de poder mudar tal situação”.
A leitura estrutural do documento de Puebla não dá mais lugar a uma visão idealista ou romântica da pobreza, nem comporta soluções de ordem reformistas ou desenvolvimentista. Eis, a propósito, o seguinte texto: “A mudança necessária de estruturas sociais, políticas e econômicas injustas, não será verdadeira e total se não for acompanhada pela mudança das estruturas mentais, pessoais e coletivas, relativas ao ideal de uma vida humana digna e feliz...”.
Assim fazer política e administrar um Estado na América Latina hoje, é faze-la no sentido amplo e profundo de Aristóteles, isto é, compromisso com a justiça e com o bem comum. Nesse sentido, a política e tudo o que está nela implicado, principalmente o econômico, constituem uma mediação para a justiça e para a superação da situação de miséria, marginalização e corrupção, que fere o nosso Continente, e que exige, de cada um de nós, um autêntico heroísmo para que se possa superar tão grandes obstáculos.
Sem pertencer a nenhum partido político ou religioso de sua época, Jesus desenvolveu uma pregação que incomodou, que questionou radicalmente as estruturas opressoras, a exploração do homem pelo homem, a autoridade encarada como domínio e não como serviço. A um povo oprimido Ele prega a libertação. E a partir do lugar social dos pobres ele anuncia o Evangelho da libertação.
Sua morte foi conseqüência da causa que abraçou: a justiça para os pobres. Portanto, foi um assassinato, uma conseqüência “da injustiça e do mal do mundo”. Na sua ressurreição, encontra-se a promessa de um mundo novo, plenamente libertado.
Embora o Documento de Puebla tenha sido produzido por uma Igreja, acabou se tornando um referencial, um norte para todos aqueles que buscam superar as estruturas injustas que predominam na nossa América Latina e que pretendem fazer política na mais nobre acepção da palavra.
O que significa governar com a Carta de Puebla nas mãos, como quer o nosso governador Roberto Requião?
Significa:
1. Agir para transformar as estruturas injustas;
2. Promover a pessoa humana, superando na ação as medidas simplesmente assistencialistas;
3. Criar condições para que os marginalizados possam ter igualdade de oportunidades;
4. Propiciar meios para que as pessoas possam superar a sua condição de dependentes e de oprimidos;
5. Combater a corrupção e dar transparência à administração pública;
6. Respeitar a diversidade e a pluralidade democrática;
7. Valorizar o que é público e respeitar ao patrimônio que é todos;
8. Colocar os meios públicos a serviço dos mais fracos e oprimidos;
9. Usar o poder para servir e não para oprimir;
Cada uma dessas diretrizes pode ser explicitada em programas e projetos para cada Secretaria, mas isso já é trabalho para um grande Seminário, ou ao menos, uma palestra na Escola de Governo.
Companheiros de governo, que a Carta de Puebla nos inspire e nos ilumine um caminho de serviço e de compromissos com aqueles que mais necessitam.
Waldir Dangelis é professor, conferencista, escritor, analista político e assessor na Secretaria de Obras Públicas do Governo do Paraná - waldirdangelis@uol.com.br