Direito à saúde, escassez e o Judiciário
A polêmica decisão do governo brasileiro de quebrar a patente do medicamento contra aids Efavirenz ilustra bem um importante problema mundial: o alto custo da saúde e a conseqüente necessidade de racionamento nessa área. Certa ou errada a decisão política, o fato é que o preço de medicamentos (influenciado pelo regime de patentes) tem claro impacto na capacidade de qualquer sistema de saúde de atender às necessidades da população.
Quanto mais caro o preço de determinado medicamento, ou se tratam menos portadores da doença correspondente ou se tratam menos portadores de outras doenças. E assim com o preço de qualquer outro insumo da saúde. Não há segredo, é a lógica implacável do “cobertor curto”.
É claro que é possível também ampliar os recursos destinados à saúde e diminuir os destinados a outros bens e objetivos. O Brasil, notadamente, gasta pouco com saúde em comparação com outros países de igual nível de desenvolvimento econômico.
Mas não dá para aumentar esses recursos infinitamente, e mesmo aumentos expressivos jamais serão suficientes para eliminar a necessidade de fazer escolhas. As necessidades em saúde são inúmeras e crescentes, os recursos são escassos, e os custos de novos tratamentos, cada vez maiores. Mesmo países ricos enfrentam esse problema em maior ou menor escala.
É nesse contexto que se deve questionar a posição quase unânime do Judiciário brasileiro (liderada pelo Supremo Tribunal Federal) de interpretar o direito à saúde como um direito individual ilimitado a todo e qualquer tratamento, procedimento ou medicamento.
Em número cada vez maior de ações judiciais, nossos juízes vêm ordenando aos serviços públicos de saúde, em todos os níveis da Federação, que financiem tratamentos originariamente não contemplados na política de saúde elaborada pelas respectivas secretarias e Ministério da Saúde.
Esses tratamentos muitas vezes são de elevadíssimo custo, disponíveis apenas no exterior e, freqüentemente, tão ou menos eficazes que os disponíveis no sistema público de saúde.
Diante da escassez de recursos, a conseqüência dessa interpretação não é, ao contrário do que se poderia imaginar, a ampliação do acesso a serviços de saúde a camadas da população anteriormente excluídas.
O resultado inevitável é, na verdade, uma substituição parcial das prioridades de investimento estabelecidas pelos especialistas em saúde pública do Poder Executivo. Ou seja, puxa-se o cobertor da saúde pública para aqueles que conseguiram acessar o Judiciário e se descobre parte daqueles que a política estatal havia originariamente decidido contemplar.
Como as camadas mais desfavorecidas da população ainda encontram obstáculos importantes no acesso à Justiça, essa atitude implica não só problemas de eficiência mas também riscos à eqüidade na distribuição dos recursos escassos da saúde.
Esse quadro parece reforçar a posição dos críticos da “justicialidade” do direito à saúde e outros direitos sociais, para os quais juízes não teriam legitimidade democrática ou capacidade técnica para interferir em complexas áreas como a da saúde. Para outros, porém, isso significaria verdadeira abdicação do Judiciário de sua função de protetor dos direitos fundamentais e conseqüente desvalorização do direito à saúde, que ficaria totalmente à mercê da vontade política de nossos governantes, historicamente insuficiente, como vimos acima, para financiar um sistema público de saúde adequado.
Não há dúvidas de que o Judiciário é posto em situação extremamente difícil quando é chamado a proteger o direito à saúde e outros direitos sociais reconhecidos na Constituição.
Simplesmente ignorar que tais direitos dependem de políticas públicas complexas, que têm custos e que os recursos para atendê-los são escassos, porém, não é resposta adequada a esse importante desafio.
O direito à saúde deve ser interpretado como um direito à igualdade de condições (eqüidade) no acesso aos serviços de saúde que determinada sociedade pode fornecer com os recursos disponíveis.
É essa a interpretação mais adequada do artigo 196 da Constituição, que garante “acesso universal e igualitário” aos serviços e ações de saúde. É ainda corroborada pelo principal tratado internacional ratificado pelo Brasil para a proteção dos direitos sociais, que impõe aos Estados o dever de protegê-los progressivamente “até o máximo de seus recursos disponíveis”. (artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais).
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 35, mestre em direito pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator especial da ONU para o direito à saúde (2006).
Artigo publicado no dia 10.08.2007, pelo jornal Folha de São Paulo, página A3, em Tendências/Debates
Data: 10/08/07 - Artigo assinado por Octávio Luiz Motta Ferraz "sobre direito à saúde e medicamentos", publicado na Folha de São Paulo
Octávio Luiz Motta Ferraz questiona posição do Judiciário na interpretação do direito à saúde como direito individual ilimitado
Publicação
10/08/2007 - 12:04
10/08/2007 - 12:04
Editoria