Data: 06/03/2006 - "Por quem berrou o bezerro sentinela" - Artigo assinado por José Adair “Gogô” dos Santos Gomercindo

Por quem berrou o bezerro sentinela
Publicação
06/03/2006 - 16:02
Editoria
Do alto do mourão da mangueira, uma coruja observa: em frente, gado... à direita, gado...à esquerda, também o gado. Atrás!?...Bem, a coruja voltou a olhar para a frente e para os lados, e viu que em cada piquete havia um bezerro. Um não.Vários. Com bois por todo lado. Perdeu o olhar no horizonte e transportou-se para a Grécia Antiga, e lembrou-se das lições de História: os gregos promoviam as “hecatombes”. O sacrifício de cem bois em honra a Júpiter. A coruja voltou a olhar mais uma vez para trás e viu uma enorme vala a céu aberto à espera do sacrifício. Cismada, olhou novamente para a vala e interrogou?.. Uma hecatombe!?... Nestes dias !??...Voôu para bem longe dali... Há muita intranqüilidade entre a manada desde o dia em que se anunciou um surto de febre entre os bovinos. Anunciaram o rebanho contaminado... no Estado vizinho, dizem que um descuido na fronteira fora a causa. Aqui, um suposto contado entre os animais numa feira causara a contaminação que despertou a ira do “senhor mercado,” que pediu, sem dó nem piedade, a cabeça de cada boi, vaca ou bezerro com a suspeita de ter a febre. Livrai-nos do “malamém”, acatou o Ministério... Na quietude das mangueiras, campos e piquetes, sob o sol das manhãs escaldantes, das tardes estivais ou das noites estreladas com suave brisa, nascem bezerros embalados pelos sons das cachoeiras não muito longe. Zelosas mães lambem suas crias e as encorajam a levantar e a andar. Em pouco tempo, graças ao colostro saudável da primeira mamada, o campo será o limite. Um berro bezerro ecoa à direita, à frente e à esquerda como viu a coruja do alto do mourão. Tivesse febre o rebanho, os bezerros estariam abortados e sequer mamariam. Então, o acaso decretou que aqueles bezerros seriam as sentinelas do rebanho. Bê é um bezerrote saudável. Nestes meses de vida, nunca teve uma úlcera na boca, uma afta, jamais perdeu peso. Muito pelo contrário, como dizem, engorda cada vez mais. Nunca mancou, tem cascos firmes e sadios. Bê não tomou a vacina contra a febre. Por isso ele é um dos bezerros sentinelas. A causa da grande preocupação de sua mãe que fica noites e dias a ruminar sozinha, como a buscar no horizonte uma resposta para o que está por vir...uma explicação que a convença deste terrível pressentimento. Não! Bê jamais anunciará a febre!!! Ultimamente há um vai-e-vem de pessoas estranhas na fazenda. O caminhão boiadeiro nunca mais apareceu...Gente de uniformes, luvas, coletas de sangue entre o rebanho, exames... Bê brinca e saltita com os outros bezerros também sentinelas. No piquete ao lado, mais meia-dúzia. No campo da frente uns quatro. Atrás, depois do córrego, mais cinco. Do outro lado, o maior, uns oito. Todos nasceram depois do anúncio da tal febre A Lua é nova. Anoitece mais cedo e as estrelas ficam mais brilhantes. A noite é mágica. Lá longe, na mata, perto do córrego, os sons da noite encantam Bê. Ele roça de leve o pescoço no mourão da esquina da cerca. Longe, muito longe o clarão dos relâmpagos o intriga. Uma suave brisa prenuncia chuva. Escuta mugidos e entre tantos, identifica um que lhe é familiar, e acorda de seu devaneio. Volta para perto de sua mãe... - Mamãe, ouvi seu mugido e ele era triste. Aliás, todos os mugidos da fazenda são tristes. O que está acontecendo? Não vejo mais a coruja que eu tentava pegar. O bem-te-vi nunca mais disse que me viu. A fazenda está triste. O que acontece...? A Mara também me disse que no piquete dela seus pais ruminam o dia todo. Ela não sabe a que horas eles pastam, só os vê ruminar, ruminar... Bê reproduziu para a mãe o diálogo que teve com Mara sobre os pais dela - Eles estão doentes? –perguntou à amiga - Não. Nunca estiveram tão bem - Respondeu Mara -Vai ver eles andam cansados. Disse Bê que logo emendou. - Faz muito calor. Não tem uma árvore lá no piquete... A mãe de Bê sabia muito bem do que se tratava, pois esteve ainda ontem à tardinha com a mãe da Mara, no alambrado que faz esquina, perto do córrego, onde Bê ficou encantado com os sons da noite e com a lua-nova... A mãe convidou-o a deitar-se ao seu lado. Bê dobrou as patas dianteiras, jogou a cabeça para frente e aconchegou-se junto ao corpo quente da mãe que lhe lambeu a face ternamente. A Lua desapareceu no horizonte e as estrelas cintilam no firmamento. No pasto do piquete o rebanho descansa. Depois que ouvira a conversa de homens à beira do alambrado, a mãe de Bê tirou lá algumas conclusões: o caminhão boiadeiro não apareceu mais. O medicamento, as vacinas que Bê e os outros bezerros não receberam logo ao nascer... É isto... aquela gente olhando nosso jeito de andar, examinado nossas línguas e bocas... - Mamãe! Bê buscou a atenção da mãe com o focinho úmido a roçar-lhes as faces que movimentavam frenéticas no ruminar nervoso. - Por que esta tristeza mamãe?. Porque esses mugidos melancólicos. Há dias que não a vejo pastar, só ruminar e ruminar... porque não pasta um pouco? Bê não entendia as conseqüências de ser um bezerro sentinela. Estava feliz por ser um. Mas sua mãe sabe que ao primeiro sinal da febre tudo estará perdido. - Mamãe! Ouvi um homem dizer que eu daria o sinal. Que sinal é este? A mãe de Bê soltou um mugido rouco, respirou fundo e resolveu não esconder nada do vitelo. - Anunciaram que estamos doente filho. Que um terrível mal se abateu sobre nossas cabeças e por isso não podemos sair do piquete, para não contaminar o rebanho vizinho. Por isso esse movimento estranho. Máquinas enormes estão trabalhando lá nos fundos da mangueira... abaixou a cabeça e murmurou num mugido inaudível... Ah!! esse terrível pressentimento... - Que sinal é esse que darei então?..- perguntou Bê - Meu filho. Por não ter tomado nenhum tipo de vacina ou medicamento, e por ser ainda um vitelinho, se o rebanho estiver contaminado como anunciaram, por não ter defesas, você e os outros bezerros ficarão doentes. - Como isso pode acontecer – indagou Bê - Terá feridas na boca e não poderá mamar, e ficará muito magro. A febre causará chagas nos cascos e não poderá andar, e... - E... o quê? interrompeu Bê - Então eles terão certeza da doença. - E o que acontecerá??... - !!! - A mãe de Bê não conseguiu responder - Mamãe, lá no piquete dos nelores. O que tem lá? - Perguntou a mãe. - O Lorinho disse para a Mara que separaram todos os garrotes. - Por que está acontecendo tudo isso mamãe?. – interrogou Bê - Sabe filho!... – disse a mãe com o mais ternos dos mugidos – A nossa razão de viver é nascer, engordar e morrer. É assim com todo ser vivo. Pelo menos para alguns do Mundo Animal. Vivemos para satisfazer o “senhor mercado”. Ele dita as regras de nossa existência. Até no Mundo Vegetal ele está presente. Por isso nunca nos preocupamos com a morte. Quando chega aqui na fazenda o caminhão boiadeiro, muitos são escolhidos para uma viagem. Não sabemos para onde estamos indo. Dizem que lá fora, para bem longe dos piquetes, há um campo com o mais gostoso dos capins, que ondulam com a mais suave das brisas, e são tão tenros quanto o azevém...É o que nos promete o “senhor mercado”. - Então o “senhor mercado” é bom mamãe? - Ele gosta de nos ver saudáveis, bonitos, gordos, e....tenros... - O que é ser tenro mamãe?... - Vamos dormir Bê. O “senhor mercado” não gosta de bezerros que não dormem, e já é muito tarde. - Olhe mamãe, o que é aquilo no céu? – Bê ainda não vira uma estrela tão brilhante - É a estrela boieira. E é sinal de que logo vai amanhecer. Dorme meu filho... A mãe de Bê adormeceu suplicando uma bênção à estrela boieira... Amanheceu. A manhã está cinza com nuvens que prenunciam tempestade. O vento produz um assovio entre os palanques do piquete e da mangueira. O dia está pesado, triste... O reponte da gadaria do lado de lá da fazenda mistura berros e mugidos que chegam até o piquete de Bê. Ouve-se barulhos estranhos misturados aos berros. O dia está abafado. Tem um cheiro no ar que Bê não sabe identificar... Os peões chegam no piquete de Bê e no da Mara que fica em frente. A mãe de Bê espicha o pescoço, ergue a cabeça e solta um mugido longo e triste... Ela sabe que chegou a hora... Bê está assustado. Abrem -se as porteiras e todos saem repontados pelos peões que seguem calados. Bê encontra Lorinho que desgarrou e vem na contramão sem rumo. Lorinho!. Vem Lorinho..chamava Bê - Não vá Bê... Não vá Bê... gritava Lorinho Bê não entendia a aflição do amigo, mas sua mãe sabia porque Lorinho estava tão assustado e aflito... Homens a cavalo repontaram a tropa em fila para dentro da trincheira. Bê ficou próximo de onde estava Mara, mais um bezerro do piquete vizinho e ao lado de sua mãe. Ouviu se uma ordem... Um som estranho, seco... A mãe tombou. Confuso, Bê pensou no “senhor mercado”. A mãe dissera que ele era senhor de suas vidas. Bê, soltou um berro pela vida, mas o “senhor mercado” não ouviu seu berro. Se ouviu, fingiu não escutar . Foi muito cruel . Então Bê soltou um último berro que ecoou pela trincheira, e chegou a todos os confins do reino do “senhor mercado”, até o mais distante... O peão chorou e um dos cavalos sangrou de tão forte que mordeu o freio. Mesmo sem ter úlceras na boca, nem chagas nos cascos, nem aftas nem febre, o berro de Bê foi pelo rebanho.... o bezerro sentinela berrou pelo rebanho e o “senhor mercado” ficou contente... Muito contente... *José Adair “Gogo” dos Santos Gomercindo é repórter-fotográfico da Agência Estadual de Notícias e acompanha a agonia dos bezerros há alguns dias