Crise abre espaço para ascensão de ordem mundial multipolar, diz analista alemão

Michael Liebig participa do seminário internacional “Crise — Rumos e Verdades”, organizado pelo Governo do Paraná em Curitiba
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09/12/2008 - 19:01
Editoria
CRISE: RUMOS E VERDADES O mundo precisa de nova arquitetura de segurança tanto quanto de uma nova arquitetura financeira e uma nova ordem econômica, disse nesta terça-feira (9) o analista de estratégia e política internacional alemão Michael Liebig, em sua participação no seminário internacional “Crise — Rumos e Verdades”, organizado pelo Governo do Paraná em Curitiba. Liebig, editor do portal www.solon-line.de, disse acreditar que a crise abre espaço para o nascimento de um mundo multipolar, com a ascensão do G-20, a “chance e a obrigação” da União Européia assumir um papel moderador e um recuo do poderio dos Estados Unidos, “devido à excepcional severidade dessa crise”. “Não compartilho da visão negativa de alguns colegas aqui sobre o G-20. Provavelmente as críticas são corretas, mas ainda assim o G-20 é a formalização da morte do G-7”, afirmou. “O mundo, em termos de potenciais novas potências, é mais diverso do que jamais foi. Então podemos de um mundo multipolar. E não tivemos um mundo multipolar até agora, na história moderna”, falou Liebig. “A crise originada e centralizada nos EUA aprofundou e seguirá aprofundando mudanças na correlação de forças entre os atores políticos e econômicos mundiais. Já temos um sistema global multipolar, mas não uma ordem. O desafio — e não sei quanto tempo ele levará para ser atingido — agora é criar uma ordem global multipolar sustentável”, argumentou. “Uma nova ordem econômica mundial e uma nova arquitetura financeira sustentáveis demandam uma nova arquitetura global de segurança. Essa nova arquitetura de segurança irá envolver, necessariamente, tópicos como estruturas de segurança obsoletas que datam dos dias da Guerra Fria, arsenais nucleares, proliferação nuclear, bases militares estrangeiras — e não imagino que os EUA, por razões econômicas, estejam em posição de manter mais de 750 bases militares em cada canto do mundo. Esse deverá se tornar um tópico urgente em todo o globo”, disse Liebig. O alemão disse também que não acha que uma recessão global é conseqüência inevitável da crise. “Para além de lidar com a crise imediata, é preciso tratar de produzir novos paradigmas econômicos, de um novo pensamento econômico. E esse novo paradigma tem de ser mais que uma simples negação mecânica do neoliberalismo, tem de abrir novas avenidas na teoria econômica”, defendeu. Liebig também comparou o presidente eleito dos EUA, Barack Obama, ao ex-líder russo Mikhail Gorbachev. “Obama se elegeu falando em mudança, mas não foi claro quanto ao conteúdo dessa mudança. Gorbachev falava em Perestroika, em mudança, mas também não era claro sobre o que queria dizer”, justificou. “Não creio que veremos grandes iniciativas por uma nova arquitetura financeira partirem do governo de Barack Obama. Porque os EUA estão muito enrolados com os problemas em seu sistema financeiro, na sua economia real, não haverá muito tempo para eles pensarem numa nova ordem na economia mundial. Pelo contrário, acredito que dos EUA partam atitudes de desestímulo, de bloqueio a tais iniciativas”, falou o alemão. Liebig participou da mesa “Crise e o Papel da China, EUA, Rússia e Índia”, que também teve a participação do diretor de Estudos Avançados da Academia de Ciências da Rússia, Yuri Gromyko, e de Franklin Serrano, professor-adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Leia os principais trechos da exposição de Michael Liebig. UM MUNDO MULTIPOLAR “Os EUA continuarão a potência militar líder pela próxima década, mas, devido à excepcional severidade dessa crise, terão seu poderio reduzido. A noção de globalização também é problemática. 15 anos de globalização geraram uma estranha dialética, em que de um lado temos uma enorme e crescente diversidade e de outro uma enorme e crescente conformidade, ou mesmo uniformidade. Mas a diversidade está lá. O mundo, em termos de potenciais novas potências, é mais diverso do que jamais foi. Então, podemos de um mundo multipolar. E não tivemos um mundo multipolar até agora, na história moderna.” “A Alemanha, que deve ser o país que mais depende das exportações no mundo, mais inclusive que a China, há 15 anos tinha nos EUA os compradores de 15% de sua produção. Hoje, eles respondem por apenas menos de 6%. Ao mesmo tempo, exporta para a Rússia, Europa oriental, China, Índia, América Latina, cada vez mais. Isso representa um potencial significativo.” “A crise originada e centralizada nos EUA aprofundou e seguirá aprofundando mudanças na correlação de forças entre os atores políticos e econômicos mundiais. Já temos um sistema global multipolar, mas não uma ordem. O desafio — e não sei quanto tempo ele levará para ser atingido — agora é criar uma ordem global multipolar sustentável.” “Uma nova ordem econômica mundial e uma nova arquitetura financeira sustentáveis demandam uma nova arquitetura global de segurança. Essa nova arquitetura de segurança irá envolver, necessariamente, tópicos como estruturas de segurança obsoletas que datam dos dias da guerra fria, arsenais nucleares, proliferação nuclear, bases militares estrangeiras — e não imagino que os EUA, por razões econômicas, estejam em posição de manter mais de 750 bases militares em cada canto do mundo. Esse deverá se tornar um tópico urgente em todo o globo.” “Desde 2007, quando a crise se instala, A União Européia — paradoxalmente, dada a sua complexa estrutura e aparentemente enfadonho mecanismo de funcionamento — tem a chance e a obrigação de exercer um papel moderador nesse mundo multipolar, dos pontos de vista econômico, financeiro e de segurança, uma vez que tem uma especial e maleável relação com os principais atores globais — a Rússia, os EUA, o Brasil, a China, Índia, entre outros.” “O sistema multipolar atual, de certa forma, nasce em 1998, quando se falou num triângulo estratégico de cooperação entre Rússia, China e Índia. Não se levou a sério. Então, em 2001, a Organização de Cooperação de Xangai foi formada, entre Rússia, China e países da Ásia Central, observados pelo Irã e pela Índia. Também não foram levados a sério. Peguemos os Bric — que também não foram levados a sério, ainda que isso esteja mudando agora. No primeiro encontro de líderes dos Bric, em maio, mal havia cobertura internacional.” “Não compartilho da visão negativa de alguns colegas, aqui, sobre o encontro do G-20. Provavelmente, as críticas são corretas, mas ainda assim o G-20 é a formalização da morte do G-7. Devemos ser mais cuidadosos ao ver isso — o G-7 não é mais o grupo liderado pelos EUA dirigindo os interesses econômicos e financeiros de todo o mundo. O mundo precisa de nova arquitetura de segurança — abrangendo de Vancouver (no extremo oeste do Canadá) a Vladivostok (principal porto russo na costa do Oceano Pacífico) — tanto quanto precisa de uma nova arquitetura financeira e de uma nova ordem econômica.” CRISE: A RECESSÃO GLOBAL NÃO É INEVITÁVEL “A crise econômica que irrompe em agosto de 2007 é principalmente a crise do sistema financeiro e da economia real dos EUA. É a crise de um modelo particular de capitalismo, um capitalismo orientado pelo mercado financeiro, em oposição ao capitalismo orientado pela economia real, que ainda é predominante na Europa continental. Nos EUA, 40% dos lucros das corporações vêm do setor financeiros. Na Alemanha, eles são apenas 8%.” “Não acredito que seja inevitável uma depressão global como resultado dessa crise originária nos EUA. Ela pode ser evitada, se as ações certas forem tomadas. As condições econômicas, financeiras, sociais, culturais de outros países são muito diferentes das dos EUA ou da Grã-Bretanha.” “Sei que a opinião dominante diz que, se os EUA caem, arrastam o mundo com eles. Também me impressiona e choca pensar no que essa crise centralizada nos EUA significa para um país como o México, que faz parte do Nafta, ou o Canadá. Mas a Europa não está no Nafta, nem a América Latina, ou a Rússia.” A PERESTROIKA DE OBAMA “Para um alemão que viu de perto as mudanças dos anos 1980, a queda do Muro de Berlim, como eu, Barack Obama se parece muito com Gorbachev. Ele fala em mudança, mas não é muito específico no conteúdo dessa mudança. Gorbachev falava em Perestroika, em mudança, mas também não era claro sobre o que queria dizer. Espero sinceramente que Obama não repita o caminho de Gorbachev, que não terminou bem, para dizer o mínimo.” “Não creio que veremos grandes iniciativas por uma nova arquitetura financeira partirem do governo de Barack Obama. Porque os EUA estão muito enrolados com os problemas eu seu sistema financeiro, na sua economia real, não haverá muito tempo para eles pensarem numa nova ordem economia mundial. Pelo contrário, acredito que dos EUA partam atitudes de desestímulo, de bloqueio a tais iniciativas. Isso pode ser um problema, se os outros atores globais de um mundo mais multipolar tiverem clareza de sua própria agenda e, em vez de simplesmente esperar e reagir ao que vem de Washington, definirem uma plataforma para uma agenda comum para discutir com o governo norte-americano.” “Ao mesmo tempo, espero ver inúmeras iniciativas dos EUA fora do eixo econômico, em questões de política externa, de segurança. Espero atitudes surpreendentes, que atraiam atenção para si e desviem os olhos do mundo do campo econômico. Não me surpreenderia se o presidente Barack Obama anunciasse, por exemplo, no aniversário dos 60 anos da primeira conferência da Otan, a redução unilateral do arsenal nuclear do país para mil ogivas. O mundo ficaria encantado, hipnotizado.” UM NOVO PARADIGMA ECONÔMICO “Para além de lidar com a crise imediata, é preciso tratar de produzir novos paradigmas econômicos, de um novo pensamento econômico. E esse novo paradigma tem de ser mais que uma simples negação mecânica do neoliberalismo, tem de abrir novas avenidas na teoria econômica, e nesse seminário temos visto muita food for thought. No desenho de uma nova arquitetura financeira mundial, as linhas básicas estão na Declaração de Modena.” “‘Agora, cada pessoa responsável e pensante no setor financeiro deve ter percebido que o mercado financeiro internacional se tornou um monstro. Precisamos colocar um espelho na frente do mercado financeiro, ele que desgraçou a si mesmo. Ainda espero uma clara e audível mea culpa.’” Essas palavras são do presidente alemão, Horst Köhler, há uma ou duas semanas. Podemos até nos perguntar — que diabos esse homem está dizendo, se chefiava o FMI até há alguns anos? Mas o que quero deixar claro é que o paradigma mudou ao longo da crise. Ouvimos e vemos coisas inimagináveis seis ou doze meses atrás. E estou certo de que seguirá sendo assim.”

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