Por iniciativa de Roberto Requião, se realizou de 7 a 11 deste mês, em Curitiba, o seminário Crise: Rumos e Verdades, que reuniu quase 40 especialistas, sendo 20 brasileiros e os demais argentinos, equatorianos, venezuelanos, ingleses, italianos, russos, mexicanos e alemães. Quero destacar alguns pontos quase consensuais entre os participantes.
A crise mundial foi considerada uma crise histórica, ou seja, daquelas que, uma vez superadas, dão origem a novas configurações culturais, econômicas e políticas. Todos concordaram que se tratava da maior queima de valores da experiência capitalista.
Uma bolha se forma sob certas condições e cresce até se romper. A bolha do subprime pareceu alimentar, no seu interior, uma construção quase impossível, aonde, sob uma base de US$ 60 trilhões da soma dos PIBs de todos os países do mundo, se ergueu uma estrutura financeira com US$ 130 bilhões de ativos financeiros primários e 540 trilhões de derivativos. Se supusermos a economia real a base sob a qual se construiu um “castelo de cartas”, de múltiplos andares, grande complexidade, circulação rápida por caminhos “normais” e por estranhos percursos negociados com o nome genérico de “produtos”. Protegido pela bolha, as cartas do edifício eram coladas pela sólida confiança do chamado sistema financeiro mundial. A dissolução da bolha é acompanhada pela desmontagem do edifício, onde a “super cola” da confiança é substituída pela desconfiança recíproca e pela preferência pela liquidez. As cartas que vão caindo são ativos financeiros que se carbonizam.
Tudo leva a crer que continuarão a cair valores e não há previsão de quando se encerra este processo autofágico. A bolha, ao explodir, atinge todas as economias do espaço-mundo. No Brasil, inspirou ampliação das remessas das filiais para as matrizes aflitas; realização de aplicações de estrangeiros em valores brasileiros, gerando pressão cambial; desabamento do preço das commodities brasileiras; crise de crédito para bancos e grandes empresas que compunham funding com empréstimos de bancos do exterior.
Nossa moeda vive um momento de intensa volatilidade e torna impossível o cálculo econômico. A solvência de empresas brasileiras está abalada por grandes perdas. Sadia, Aracruz Celulose e Grupo Votorantim, por alguns balanços já divulgados, registram perdas dos lucros do balanço operacional dissipadas por perdas não-operacionais derivadas de jogos financeiros. Este aprece ser também o caso da CSN. Na crise da agricultura do Centro-Oeste, há uma forte componente com perdas especulativas no jogo de derivativos ligado ao mercado de futuros. Em resumo, a súbita inversão da taxa de câmbio impôs prejuízo às empresas que apostavam na valorização do real. Pela versão interna de crise de crédito, houve uma brutal elevação de juros; o capital de giro para empresas subiu de 2,02 a.m. para 3,20 a.m.; o empréstimo pessoal atingiu 6,15% a.m.; o cheque especial pratica 9,24% a.m. Continuamos, pela última decisão do Copom, campeões mundiais da taxa de juros real. Paulo Skaf, presidente da FIESP, em 17/11, declarou: “Estes juros que estão sendo cobrados são um catalisador para a crise”. Com lentes diferentes, Fábio Barbosa, presidente da FEBRABAN, afirma, em 26/11, que “o mercado está, pouco a pouco, retomando sua normalidade”.
O Brasil, hoje, dispõe de alguns recursos estratégicos para lidar com a crise. O principal deles são os US$ 200 bilhões de nossas reservas cambiais. Paira, entretanto, sobre este escudo, uma caixa-preta. Prevalece uma forte obscuridade em relação às articulações entre as empresas no Brasil e o cenário financeiro mundial – e é especialmente opaca nossa relação com SPEs, paraísos fiscais e derivativos intermediados por bancos estrangeiros. Dado o tamanho do passivo externo líquido superior a US$ 500 bilhões, não estamos a salvo de um ataque especulativo ao real. Deveríamos centralizar todas as operações cambiais no Banco do Brasil, dando um prazo para que todas as entidades (empresas ou pessoas físicas) registrassem seus haveres e deveres em moedas estrangeiras e participação em operações com derivativos. O Banco Central administraria um orçamento de câmbio realista. Esta seria a nossa operação de desrespeito ao Consenso de Washington. Na perspectiva brasileira, a crise da globalização instala um clima de economia de guerra e o nosso escudo protetor de US$ 200 bilhões é essencial para o futuro da nação brasileira.
De longa data, o devedor pessoa física é o preferido pelos bancos; tanto no pagamento de carnês de compras a prestação como nos cartões é bom pagador. Assume o débito pelo valor da prestação, aceita a tabela price e não considera o juro implícito na prestação (como vimos, paga no crédito especial 9,24 a.m.). Os bancos operam crédito a pessoa física com o risco reduzido, principalmente pela modalidade de crédito consignado ou desconto em folha. A família popular com baixa renda é ótima pagadora, pois percebe no estigma do SPC um veto à acumulação patrimonial. Na verdade, o bem de consumo durável ocupa um duplo espaço de patrimônio e objeto doméstico; qualquer família pobre sabe que seu eletrodoméstico é sua garantia num momento de dificuldade financeira. Este devedor pobre, muitos sem renda fixa, participou de uma expansão acelerada de endividamento. Sua propensão a se endividar foi estimulada pelo aumento de renda e pela sensação de segurança e progresso derivada da Bolsa Família e da queda de preço dos alimentos em 2005-6.
Esta situação inspira preocupação em José Castro, vice-presidente da AEB: “Se houver prolongamento da recessão internacional, o impacto no emprego poderá elevar a inadimplência, determinando um ciclo negativo na economia brasileira. (...) Nos últimos anos, o crédito no mercado interno cresceu a taxas elevadíssimas. Se houver demissões, além da retração interna, teremos problemas sérios. Crédito consignado tem prazo longo e, se houver explosão de inadimplência, poderemos ter um subprime tupiniquim”. Creio que Castro olha com temor o financiamento de veículos em 90 prestações sem entrada.
O Seminário Crise: Rumos e Verdades registrou, com reocupação, a existência de uma bolha tupiniquim, pequena em relação à crise da globalização, porém com repercussões extremamente perversas no corpo social brasileiro. A prevenção passa por reassumir os controles sobre os mecanismos da política econômica. Como bem advertiu César Benjamin: “É melhor estar preparado para piores cenários do que ser surpreendido por eles”.
*Carlos Lessa é economista, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).Artigo publicado no jornal Valor Econômico. Graduado em Ciência Econômicas pela Universidade do Brasil, é mestre em Análise Econômica pelo Conselho Nacional de Economia e doutor em Ciências Humanas pela Universidade Estadual de Campinas.