Maria Rita Reis
Assessora jurídica da Terra de Direitos
Daqui a exatamente uma semana, inicia-se o 3º Encontro de Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP 3), que precederá a Oitava Convenção de Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8).
As negociações que deram origem ao Protocolo iniciaram em 1995 e foram concluídas no ano 2000. O objetivo central na formulação do Protocolo foi a necessidade de criar mecanismos de proteção da Biodiversidade ante aos danos que os produtos da Biotecnologia podem ocasionar.
Em 2003, quando 50 países tinham ratificado o protocolo, ele entrou em vigor, com um sistema de normas vinculantes que têm como objetivo central garantir “um nível adequado de proteção na esfera da transferência, manipulação e utilização adequada dos organismos vivos modificados OVM (...), tendo também em conta os riscos para a saúde humana e centrando-se concretamente no transporte transfronteiriço”.
Com a entrada em vigor do Protocolo, as partes passaram a discutir os mecanismos de sua implementação. No momento, a discussão central refere-se à forma de identificação dos organismos vivos modificados destinados ao uso direto na alimentação humana ou animal e/ou ao beneficiamento. A obrigatoriedade da identificação clara deste tipo de ovm está prevista no artigo 18, 2 (a) do Protocolo (1).
Há basicamente duas propostas na mesa de negociação: uma delas prevê que a identificação seja feita através da frase “pode conter OVM” e a outra, prevê a identificação através da expressão “contém OVM” acompanhada das informações exatas sobre a caracterização do OVM a ser transportado e medidas de biossegurança a serem adotadas no transporte e manipulação dos OVM.
As partes do Protocolo tinham até setembro de 2005 para tomar a decisão sobre as exigências para a identificação. Ocorre que na MOP 2, realizada naquele ano, o Brasil liderou um processo de obstrução das negociações, que impediu a tomada de decisão sobre o assunto.
A postura brasileira, que teria se baseado na necessidade de analisar melhor os impactos da adoção do Protocolo nas exportações do país, gerou um enorme desconforto e perplexidade internacional. Sendo parte do Protocolo, o Brasil passou a defender uma postura que, na prática, inviabiliza a implementação das normas internacionais de biossegurança. Não menos contraditório foi o comportamento da delegação brasileira: representantes do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde sustentaram posições divergentes às dos representantes do Ministério da Agricultura. A Casa Civil tomou a decisão final, e, em uma decisão cega, acatou a posição do Ministério da Agricultura, decidindo por obstruir as negociações.
Em grande medida para atenuar o desconforto produzido por sua atuação na MOP 2, o governo brasileiro instituiu um Grupo de Trabalho com participação de Governo e Sociedade Civil para discutir a posição brasileira.
As reuniões sobre o Protocolo de Cartagena foram realizadas nos dias 08, 09 e 10 de fevereiro e, às vésperas da MOP 3, serviram apenas para demonstrar que o impasse no âmbito do Governo permanece. No Encontro das Partes a ser realizado em Curitiba, o tema central ainda será a forma de identificação dos OVMs destinados ao consumo humano ou animal.
O Ministério da Agricultura, o Ministério da Indústria e Comércio e o de Ciência e Tecnologia permanecem irredutíveis na defesa da utilização da expressão “pode conter”. Estes Ministérios contam com o apoio de representantes de organizações ligadas ao agronegócio (CNA, FARSUL e outras) e das organizações ligadas às transnacionais da biotecnologia (ANBIO e CIB).
A argumentação das organizações ligadas ao agronegócio baseia-se em cálculos apresentados segundo os quais o custo da implementação do “contém” oneraria as exportações brasileiras. Um ano após terem sido causa do fracasso da Reunião de Montreal, estes setores não apresentaram cálculos fundamentados em estudos concretos sobre os custos que a implementação da identificação clara e precisa poderia ocasionar. Os dados apresentados consistem em estimativas confusas que misturam custos de identificação, rastreabilidade de diferentes espécies de OGM. O Ministério da Agricultura, por sua vez, não realizou nenhum estudo oficial sobre o assunto.
Com outro argumento, as “associações de biotecnologia” financiadas pelas indústrias defendem que o a expressão “Pode Conter” satisfaz as exigências de biossegurança, já que “todos os OGMs comercializados no mundo passaram por análises de risco”. Estes setores admitem que a documentação que acompanha cada carga seja acompanhada de uma lista com todos os OVMs daquela espécie liberados na região de origem.
Além de inconsistentes do ponto de vista econômico, o argumento de que o “pode conter” é suficiente para que medidas de biossegurança sejam tomadas é cínico: a expressão não diz nada e inviabiliza medidas de biossegurança no transporte e manipulação dos OVMs e ainda desconsidera o fato de que as análises de risco em cada país, pelo menos no que se refere às questões ambientais, são específicas. Nesta lógica, todo o esforço no sentido de implementação do Protocolo vai pelo ralo: as regras internacionais sobre o transporte e a manipulação de OGM ficam presas a um sistema de informação frouxo e inconseqüente.
Na prática, adotado o “pode conter” os produtores de transgênicos seriam desonerados de qualquer cuidado ou de adotar qualquer regra de biossegurança, que ficariam a critério do país importador. Neste modelo de identificação, as medidas de biossegurança seriam custeadas pelo Estado importador, que também seria o mais provável responsabilizado no caso da ocorrência de danos.
Os Ministérios do Meio Ambiente, da Saúde, do Desenvolvimento Agrário e da Justiça seguem defendendo que a forma de identificação seja realizada através da expressão “Contém OVM”, acompanhada, por óbvio, de informações claras e precisas sobre as características do OVM e ainda, da análise de risco realizada e das medidas de biossegurança que devem adotadas no transporte e manipulação do OVM.
Seguindo-se este modelo, é, portanto, necessário especificar exatamente qual (is) OVM está sendo transportado, quais medidas de biossegurança devem ser efetuadas no transporte e manipulação do ovm. Estas medidas são fundamentais. Tome-se por exemplo, a hipótese de importação ou exportação de um OVM destinado apenas ao consumo animal (como é o caso de algumas variedades de milho transgênico): é essencial que exista esta informação e ainda as medidas de biossegurança necessárias para que este produto não seja indevidamente utilizado na alimentação humana.
Esta regulamentação é totalmente coerente com a legislação brasileira: lembre-se que a cadeia produtiva por força da legislação interna já é ou deveria ser adequada a esta realidade. O decreto 4.680/2003, por exemplo, obriga que todos os documentos fiscais (incluindo aqueles referentes à exportação) devem trazer consigo a informação sobre a natureza transgênica do Produto. A rigor, o mecanismo que deveria possibilitar, no Brasil, a rotulagem, já seria suficiente para possibilitar a identificação na exportação.
A posição brasileira sobre o tema, a uma semana da MOP, não foi divulgada. A reunião do Conselho Nacional de Biossegurança, que definiria o tema, foi adiada e não tem data para ocorrer. Ao que tudo indica, caberá ao presidente Lula decidir a postura da delegação brasileira.
No final da última semana, a imprensa divulgou algumas possibilidades de “terceira via” entre o “contém” e o “pode conter”, ambas igualmente preocupantes.
A primeira delas, defendida pelas “associações de biotecnologia” ANBIO e CIB prevê a possibilidade de utilizar a expressão “pode conter” associada a uma documentação que esclareça que tipo de OVMs da espécie transportada foram liberados no país exportador ou na região de origem. Esta proposta é absolutamente inadequada. O que se quer alcançar com a identificação é que o país recebedor do OVM possa ter condições de, ao receber a carga, tomar as medidas de biossegurança cabíveis, medidas estas que podem (e freqüentemente são) diferentes para cada tipo de OVM. O que fazer nos casos em que há diferenças nos eventos liberados em cada país? O caso mais palpável é o do milho. Se temos apenas um evento liberado, do que adianta que os carregamentos venham identificados com “pode conter” e uma documentação que descreva os 5 eventos, autorizados, por exemplo, na Argentina? Um sistema de biossegurança eficaz pressupõe a certeza sobre que tipo de OVM está sendo introduzido no país. A expressão “pode conter” é exatamente o inverso desta necessidade.
A segunda possibilidade foi apresentada em uma matéria publicada no Jornal Valor Econômico do dia 03 de março. Segundo o que se descreve no mencionado artigo, o Governo Brasileiro estaria cogitando a possibilidade de apresentar a proposta de que as regras de identificação fossem específicas para cada cadeia produtiva, de acordo com as condições de cada uma delas, de modo que nas cadeias de produção “onde seja possível” adote-se a expressão “contém” e nas que “não houver condições” adote-se o “pode conter”. Esta postura reflete bem a política interna do Brasil em matéria de transgênicos, apelidada pelo próprio governo de “política do fato consumado”.
É inadmissível que quaisquer outros critérios, que não os que digam respeito à biossegurança, sejam adotados para definir as regras de identificação no âmbito do Protocolo de Cartagena. Além disso, casuísmos só gerariam ainda mais dificuldades na implementação das normas, já que as decisões sobre a identificação demandariam um processo negociador para cada OVM.
Na última semana, organizações da sociedade civil e movimentos sociais enviaram Carta aos Ministros do Conselho Nacional de Biossegurança e ao Presidente Lula, solicitando que o Brasil defenda regras claras e precisas no transporte transfronteiriço de OVMs. Para as organizações, a única forma de viabilizar estas regras é a adoção da expressão “contém”, necessariamente associadas a uma documentação que esclareça o tipo de OVM transportado, elementos utilizados na análise de risco utilizada e ainda as medidas de biossegurança cabíveis.
Continuaremos defendendo esta posição durante as mobilizações que marcarão a MOP 3 no Brasil.